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A América Latina é atualmente o epicentro da pandemia pelo novo coronavírus, com cinco países entre os dez com maior número de casos registrados no mundo, de acordo com relatório da Organização das Nações Unidas (ONU), lançado em julho. Segundo monitoramento da Universidade Johns Hopkins, na Inglaterra, apenas Brasil e México concentram 70% das mortes pela Covid-19. Juntos, Brasil, México, Peru, Colômbia e Chile, somam quase 5 milhões de casos e 200 mil mortes.
Nos últimos dias, o Brasil ultrapassou a marca de mais de 3 milhões de infectados e mais de 100 mil mortes registradas causadas pela Covid-19. Diversos são os fatores que contribuíram para este cenário. De acordo com o médico patologista e pesquisador da Fiocruz Bahia, Mitermayer Galvão dos Reis, o principal fator é decorrente de um fenômeno de rápida e intensa transição demográfica da área rural para a área urbana na América Latina, que cria as megacidades com grande número de pessoas que moram em situações de alta vulnerabilidade social.
Segundo Mitermayer, a desigualdade social leva o indivíduo a viver com insuficiência de recursos financeiros, em locais onde não há saneamentos adequado, sem oferta de água encanada e esgoto, e morando de maneira aglomerada em habitações muitas vezes com apenas um cômodo. “Como vamos falar de distanciamento social nessas situações?”, questiona o pesquisador.
Essas condições levam a uma dificuldade da implementação das medidas mais básicas de controle da Covid-19, como o uso de água e sabão para higienizar as mãos e alimentos e a disponibilidade de máscaras em quantidade adequada. Mitermayer ainda reforça que o acesso a álcool em gel pode ser considerado um luxo, uma recomendação nem sempre aplicável a pessoas que vivem nessas condições.
Outro ponto tocado pelo pesquisador é a dificuldade de manter o distanciamento social no transporte público, agravado pela redução na oferta do transporte com as implementações das medidas para diminuir a circulação das pessoas pela cidade. “Ônibus, metrôs, os hidroviários no caso do Amazonas, estão sempre cheios e os usuários ficam agrupados por horas no trajeto, aumentando o risco de contaminação”, afirma Mitermayer.
Os países da América Latina também são caracterizados pela alta do desemprego, que leva ao emprego informal. Muitas pessoas trabalham como ambulantes ou em feiras, propiciando aglomeração, aumentando o risco de infecção.
Testagem e atenção primária
Para Mitermayer, a pouca oferta de testagem é também um dos fatores que levam a manutenção do estado de epicentro da pandemia da América Latina. Segundo o cientista, a baixa testagem não mostra o quadro real da situação e, sem a identificação dos indivíduos infectados, a Vigilância Epidemiológica fica impossibilitada de identificar também os contatos diretos dessas pessoas e impedir que eles continuem circulando e contaminando outras pessoas. “Se você testa o indivíduo, ele sabe que está infectado e ele mesmo vai se cuidar, na maioria das vezes, e evitar a contaminação de outras pessoas”, acrescenta o pesquisador.
O pesquisador defende o uso da telemedicina como forma de auxiliar os pacientes com Covid-19 a passarem por essa situação da melhor maneira possível, com o acompanhamento constante de um médico por telefone ou chamada de vídeos tirando dúvida e dando as orientações em caso de piora dos sintomas.
Para Mitemayer, a atenção primária em saúde em países da América Latina, em especial em situação de pandemia, também é outro ponto que precisa ser melhorado. Na maioria das vezes, esses países têm limitações no que diz respeito a espaço físico, equipamentos de proteção individual, medicamentos e recursos humanos, especialmente profissionais de saúde.
O pesquisador diz que é preciso garantir que as unidades básicas de saúde estejam equipadas e preparadas para atender esses pacientes com coronavírus, com equipamentos de proteção individual (EPI), medicamentos adequados para casos de intubação ou tratamento dos sintomas, assim como realização de teste para Covid-19 e exames básicos como hemograma e oximetria para verificar o nível de oxigênio no sangue.
Outra sugestão de enfrentamento feita pelo pesquisador é entrada dedicada para casos de Covid-19 nos postos de saúde, como está sendo feito nos hospitais de referência, além da distribuição de álcool em gel e máscaras nestas unidade.
A especialização do profissional de saúde também é um ponto importante a ser discutido na pandemia, apontado por Mitermayer. No caso da Covid-19, ele explica que um profissional de saúde para trabalhar em Unidade de Tratamento Intensivo precisa de experiência, o que ainda falta na quantidade ideal nesta região. Profissionais com menos experiência e até recém-formados em medicina estão sendo recrutados para trabalhar na linha de frente, o que não é o ideal, mas é a forma encontrada para suprir a demanda.
“Em relação aos hospitais de referência, o ideal é ter uma equipe multidisciplinar com médico infectologista, pneumologista, cardiologista, hematologistas e nefrologistas, como também enfermeiros e fisioterapeutas especializados, já que a Covid-19 é uma doença sistêmica, atingindo diversos órgãos”, acrescenta.
Retorno ao “normal”
Quando se fala em retorno da atividade econômica e reabertura do comércio nos países da América Latina, Mitermayer é enfático ao dizer que é preciso levar em consideração as experiências de outros países da Ásia, Europa e também dos Estados Unidos, que estão experimentando o efeito rebote após a reabertura. “O retorno não deve ser baseado apenas na quantidade de leitos disponíveis, mas também deve ser levado em consideração o número de infectados, ampliando a testagem para que esse número seja o mais perto do real”, explica.
A esperança para o retorno à vida como era antes da pandemia está no desenvolvimento de uma vacina eficaz para o vírus. Para o pesquisador, um problema para a América Latina será a produção em larga escala da vacina, pois existem apenas dois laboratórios capazes de atender a demanda da região: Bio-manguinhos, da Fiocruz, e Instituto Butantan, ambos no Brasil. Laboratórios particulares presentes em outros países não possuem estrutura para a produção de milhões de doses e o Brasil será o centro de distribuição das vacinas da região.
Como prioridade para vacinação, Mitermayer defende que, além dos trabalhadores de unidades de saúde e de serviços essenciais, como farmácias, supermercados, da polícia e motoristas de transporte coletivo, um outro grupo seria de indivíduos que trabalham presencialmente e não puderam aderir ao “home office” durante a pandemia. Para o pesquisador, crianças também devem ter prioridade, mesmo que não sejam consideradas grupo de risco. “Não se iludam: criança pode não adoecer tanto, mas leva para casa o vírus”, disse, salientando que a vacinação é uma medida para o retorno seguro das aulas.