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Por Bethânia Almeida
Observatório em Ciência, Tecnologia e Inovação em Saúde
Pesquisas realizadas na década de 1990 apontaram que menos de 10% dos recursos destinados à pesquisa em saúde eram alocados para doenças ou condições responsáveis por 90% da carga de doenças no mundo, aspecto conhecido por gap 10/90. A partir destes estudos deficiências relacionadas aos esforços em pesquisa voltados a doenças que afetam desproporcionalmente populações pobres de países em desenvolvimento ficaram mais evidentes.
É consenso que doenças cujos mercados não apresentam potenciais de rentabilidade não recebem investimentos por parte de empresas privadas ocasionando falhas de mercado. Doenças relacionadas à pobreza também sofrem de falhas de ciência pela insuficiência de conhecimentos para avançar na obtenção de tecnologias e falhas de saúde pública porque mesmo quando existem tecnologias disponíveis nem sempre os doentes têm acesso aos serviços de saúde, sendo, portanto, negligenciadas em aspectos que não se restringem a falta de investimentos por parte de empresas biofarmacêuticas.
Esforços voltados à inovação tecnológica precisam ser integrados às estratégias de saúde pública. Um exemplo da necessidade de aproximação entre inovação tecnológica e saúde pública é que o alcance de metas relacionadas à redução de doenças infecciosas e mortalidade materno-infantil preconizadas pelo relatório The Global Health 2035 não serão alcançadas sem a obtenção de novas tecnologias incluindo medicamentos, reativos para diagnóstico e vacinas.
A obtenção de inovações em setores baseados em ciência como o setor saúde é pautada em processos caros, demorados e incertos por não existir relação direta entre investimentos e resultados em suas diversas etapas. Adicionalmente, diferentes competências são necessárias para avançar de um estágio ao outro que vão desde a pesquisa em bancada, produção de pequenos lotes para testes pré-clínicos e clínicos, licenciamento, produção e distribuição em escala. A coordenação e integração entre distintos conhecimentos científicos, técnicos e gerenciais no desenvolvimento da tecnologia são imprescindíveis para minimizar riscos e incertezas para que uma invenção chegue à sociedade e se torne uma inovação tecnológica[1].
Conhecimentos que embasam avanços científicos relacionados às doenças negligenciadas são obtidos principalmente a partir de pesquisas conduzidas em universidades e institutos públicos de pesquisa, que contam com financiamento público. A despeito de algumas destas pesquisas terem perspectiva de aplicação em produtos, processos e políticas em geral são mais voltadas à obtenção de conhecimentos fundamentais e não se pautam em agendas institucionais articuladas a estratégias e prioridades nacionais e globais de P&D.
Pesquisas promissoras encontram dificuldades para alcançar a fase de ensaios clínicos devido aos altos custos e necessidade de competências específicas para conduzir estas etapas, cruciais para que uma tecnologia seja licenciada. Como não existe mercado comercial para motivar investimentos privados, são necessários modelos alternativos que alinhem políticas de pesquisa, desenvolvimento tecnológico e inovação às necessidades globais de saúde.
A partir dos anos 2000 as Parcerias para o Desenvolvimento de Produtos (PDPs) tem se destacado como a melhor estratégia para alinhar interesses, coordenar competências e recursos voltados ao desenvolvimento de tecnologias para doenças negligenciadas. Iniciativas que tem contado principalmente com o aporte financeiro de organizações filantrópicas e governamentais de países desenvolvidos.
As PDPs são definidas enquanto organizações internacionais sem fins lucrativos com foco em questões específicas e particulares de saúde pública que impulsionam o desenvolvimento de produtos em conjunto com parceiros externos. O diferencial desta estratégia é que possibilita preencher lacunas nos processos iniciais de P&D através da integração de capacidades científicas, técnicas e regulatórias sob uma única estrutura financeira e de gestão, evitando a fragmentação de recursos e competências até então dispersas entre os atores.
A despeito de críticas relacionadas a sobreposição de atuação entre PDPs, assimetria de influência entre parceiros e falta de transparência quanto a estrutura de governança e acordos firmados, que incluem aspectos de propriedade intelectual em favor de empresas biofarmacêuticas, a estratégia de coordenar e integrar esforços entre parceiros para atingir objetivos específicos é considerada a mais adequada para viabilizar inovações voltadas a doenças que não tem apelo comercial.
Neste sentido, acredita-se que PDPs globais devem ser estabelecidas tendo por lastro princípios, critérios e objetivos claros pautados em aspectos humanitários que visam superar a privação de cuidados à saúde. Embora o poder de compra dos países, de organismos internacionais e organizações sem fins lucrativos também devam ser levados em considerados na estruturação desta dinâmica de inovação pela necessidade de economia de escala para ampliar as chances de as tecnologias terem preços acessíveis. Adicionalmente, a gestão do conhecimento e acesso aberto a dados são imprescindíveis para evitar duplicidade de esforços, redução de custos e tempo.
A estruturação, monitoramento e avaliação dos novos arranjos institucionais e interdependência entre atores e países em PDPs globais podem contar com a intermediação da Organização Mundial de Saúde (OMS) cujo papel seria de suma importância enquanto órgão público multilateral e independente. Defende-se ainda que cada país deva ter autonomia para analisar sua infraestrutura científica e tecnológica acerca da doença em questão e prioridades de saúde para definir as formas de cooperação dentro das PDPs globais, enquanto os critérios de contribuições financeiras regulares até a obtenção do produto poderiam ser pautados na realidade dos países, a exemplo do Produto Interno Bruto.
Levando-se em consideração que aspectos éticos e solidários são insuficientes para mobilizar ações devido ao envolvimento de recursos econômicos, normativos e políticos que estão distribuídos assimetricamente entre os atores, os quais também possuem interesses distintos, metodologias de avaliação de impacto acerca da introdução e efetividade das novas tecnologias devem ser empregadas para prover evidências sobre as externalidades destas, em níveis locais e globais.
O alinhamento e estabelecimento de colaborações estratégicas orientadas à saúde global atuando com critérios claros acerca do tipo de tecnologia a ser desenvolvida, papel dos envolvidos, monitoramento e avaliação transparentes podem superar obstáculos que impedem a obtenção de inovações voltadas a doenças que afetam desproporcionalmente as populações mais pobres do planeta. Doenças que deixarão de ser negligenciadas com o comprometimento, coordenação de esforços e regularidade de recursos por parte de governos, comunidades científicas, organizações filantrópicas e empresas privadas.
Referências
ALMEIDA, B.A. A dinâmica de inovação no setor de vacinas e o desenvolvimento de candidatas à vacina contra a dengue. Tese (doutorado) – Instituto de Saúde Coletiva. Universidade Federal da Bahia, 2014.
Global Forum for Health Research .The 10/90 Report on Health Research 2000.
Moran M. The grand convergence: Closing the divide between public health funding and global health needs. PLoS Biol. 2016; 14(3): e1002363.
Morel, C. Inovação em saúde e doenças negligenciadas. Cad. Saúde Pública, Rio de Janeiro, 22(8): 1522-1523, ago, 2006.
Morel CM, Acharya T, Broun D, Dangi A, Elias C, Ganguly NK, et al. Health innovation networks to help developing countries address neglected diseases. Science. 2005; 309:401–4.
Stokes, D. E. O quadrante de Pasteur: a ciência básica e a inovação tecnológica. Tradução José Emílio Maiorino. Campinas, SP: Editora UNICAMP, 2005.
VELÁSQUEZ, G. Public-private partnerships in global health: putting business before health? – Research Papers 49, The South Centre January 2014.
Yamey, G; Morel, C. Investing in Health Innovation: A Cornerstone to Achieving Global Health Convergence. PLoS Biol. 2016; 14(3): e1002389.
Fonte: Observatório em CT&I (Fiocruz)