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No início de 2019, o ciclone Idai atingiu Moçambique, acompanhado de fortes chuvas, inundações e destruição, principalmente na Província de Sofala. Três meses após o desastre, as autoridades de saúde do distrito de Nhamatanda relataram um grande surto de pelagra, acometendo cerca de 2.300 pessoas. Nhamatanda é um dos distritos mais pobres da Província de Sofala, que possui cerca de 322.500 habitantes, sendo a maioria de pequenos agricultores de subsistência e pequenos comerciantes. A pelagra é causada pela deficiência de vitamina B3 e de um aminoácido chamado triptofano. Os principais sintomas da doença, que pode levar à morte se não for tratada, são dermatite (pele áspera), diarreia e demência.
Uma investigação foi realizada para caracterizar os casos da doença, identificar fatores associados ao desenvolvimento da doença e analisar o impacto do ciclone na segurança alimentar da população atingida. O trabalho faz parte da tese de doutorado realizada no Instituto de Saúde Coletiva (ISC/UFBA), pelo estudante moçambicano Vánio Mugabe, sob a orientação de Guilherme Ribeiro, pesquisador da Fiocruz Bahia e professor da UFBA. Em colaboração com o Instituto Nacional de Saúde de Moçambique, Mugabe, que também é professor na Universidade Licungo, em Quelimane, Moçambique, tem dedicado seu doutorado ao estudo do impacto das recorrentes tempestades tropicais e ciclones que têm atingindo o país, impactando na saúde da população.
Durante a investigação do surto de pelagra no distrito de Nhamatanda, o doutorando e uma equipe de pesquisadores de Moçambique entrevistaram 69 chefes de família. Também coletaram e compararam dados sobre o padrão alimentar anterior e posterior à chegada do ciclone Idai entre 121 pessoas que desenvolveram a doença durante o surto e 121 indivíduos sem a doença. Os resultados da investigação foram descritos em artigo publicado no American Journal of Tropical Medicine and Hygiene.
A pesquisa apontou que a destruição causada pelo ciclone afetou a segurança alimentar da população local, que já enfrentava escassez de alimentos, mencionada por 51% dos chefes de família entrevistados, antes de o ciclone chegar. Com isso, o consumo de vitamina B3, que já era deficiente mesmo antes da passagem do ciclone, foi reduzido para níveis inferiores àqueles necessários para evitar o surgimento da doença na população.
Os pesquisadores observaram que os indivíduos mais propensos a serem acometidos pela pelagra foram as mulheres (que representavam 91% dos casos e 55% dos controles) e pessoas com menor escolaridade (40% dos casos contra 22% dos controles eram analfabetos). Das 99 mulheres incluídas no estudo por apresentar a doença e com idade maior que 15 anos, oito estavam grávidas e 48 estavam amamentando. Para os cientistas, o aumento da chance das mulheres de terem a doença pode ser parcialmente explicado por fatores culturais, como privação de comida para alimentar seus filhos ou maridos, e causas fisiológicas, como picos hormonais e maior necessidade de nutrientes durante a gravidez e a amamentação. Também se observou que um baixo consumo de alimentos ricos em vitamina B3 e triptofano (como carne, frango, ovos e amendoim) previamente à chegada do ciclone Idai esteve associado a maior chance de acometimento pela pelagra.
No artigo, os autores relataram que, após o ciclone, algumas pessoas ficaram sem comida por até 4 dias até a chegada da ajuda alimentar de agências humanitárias. Com a redução na oferta de comida, algumas famílias tiveram que se alimentar de milho molhado e estragado. As agências distribuíram aves domésticas e sementes, como milho, feijão e de vegetais, para oferecer uma solução de longo prazo, porém, chuvas intensas mais uma vez destruíram as plantações.
Os pesquisadores ressaltam que pobreza, desastres naturais, catástrofes climáticas, guerras, migração e cenários de refugiados são o principal gatilho para o surgimento de surtos de pelagra, pois limitam a disponibilidade e o acesso aos alimentos em quantidade e qualidade necessárias. Em situações como as descritas é fundamental o estabelecimento de ações humanitárias e de solidariedade global entre povos para garantir a disponibilidade de água potável, alimentos, roupas e abrigo de modo a prevenir o surgimento da pelagra e de outros problemas de saúde.