A Zika não é mais a única infecção por arbovirose a ser considerada letal para um bebê em desenvolvimento. Um estudo científico detectou que a dengue também pode representar um risco à vida do feto. Ter dengue durante a gestação quase dobra a probabilidade de um bebê nascer morto ou morrer durante o parto, enquanto a dengue severa aumentaria em cinco vezes as chances de um natimorto – nome dado à morte do feto acima de 500g dentro do útero ou durante o parto.
O achado, publicado na edição de setembro do periódico The Lancet, foi obtido a partir da análise dos registros de sistemas de informações brasileiros. Para chegar a tais resultados, os pesquisadores cruzaram os dados de mais de 162 mil natimortos e 1,5 milhão de nascidos vivos, sendo que, desses, 275 natimortos e 1.507 nascidos vivos tinham sido expostos a dengue. Este é o primeiro estudo realizado em larga escala a demonstrar a associação. Apenas um estudo anterior, com uma pequena amostra de um hospital, indicou a relação entre a infecção e natimorto.
O artigo, intitulado “Symtomatic dengue infection during pregnancy and the risk os stillbirth in Brazil, 2016-12: matched case-control study”, contou com a autoria dos pesquisadores do Centro de Integração de Dados e Conhecimento para Saúde (Cidacs/IGM/Fiocruz) Enny Paixão, Mauricio Barreto, Maria Glória Teixeira e Laura Rodrigues, em parceria com pesquisadores do Instituto de Saúde Coletiva da Universidade Federal da Bahia (ISC/UFBA), Universidade de São Paulo (USP) e da London School of Hygiene & Tropical Medicine, no Reino Unido.
Dados
O estudo foi realizado com dados obtidos entre dezembro de 2012 e janeiro de 2016 do Sinasc (Sistema de informação de Nascimentos), SIM (Sistema de Informação de Mortalidade) e Sinan (Sistema Nacional de Agravos de Notificação).
A análise indicou que o risco de natimortos entre todos os nascimentos registrados no período foi de 11 por 100 nascidos vivos. Já quando considerado apenas a amostra das mães infectadas por dengue, a taxa de incidência foi de 15 por 1.000. Quando considerada a gravidade da doença, a dengue severa aumenta o risco de natimorto em cinco vezes, cerca de três vezes mais que a dengue comum.
Os mecanismos pelos quais a dengue causaria o nascimento de natimortos é desconhecido, mas os pesquisadores apontam três hipóteses para explicar o fenômeno: os sintomas de dengue afetariam diretamente o feto; a dengue causaria mudanças na placenta; ou o próprio vírus teria um efeito direto no bebê em formação.
Apesar de desde os anos 1980 o Brasil passar por sistemáticas epidemias de dengue, a doença era considerada letal apenas quando atingia sua forma hemorrágica, que agravava o quadro do infectado podendo levar a morte. No entanto, com a epidemia de anomalias congênitas associadas à Zika ocorrida em 2015, a investigação científica se voltou para os efeitos das infecções virais durante a gestação.
Em 2015, cerca de 2.6 milhões de bebês foram considerados natimortos no mundo. A estimativa é que infecções virais, no geral, representam cerca de 14% de todos os óbitos fetais. Algumas infecções possuem forte evidência científica de associação com natimortos: Sífilis, Toxoplasmose, Citomegalovírus e Parvovírus B19.
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Confira abaixo a entrevista com a autora principal do estudo, a pesquisadora do Cidacs Enny Paixão, doutoranda da London School of Hygiene & Tropical Medicine, em Londres.
Esse estudo é pontual ou é parte de algum outro em andamento? Qual é a importância desse achado?
Este estudo compõe a minha tese de doutorado que tem por objetivo verificar se existe associação entre dengue e desfechos negativos da gravidez. Este achado é importante tanto para a formação de políticas públicas quanto para protocolos de assistência em unidade de saúde, que podem recomendar que em áreas endêmicas para dengue, mulheres grávidas sejam consideradas população de risco, por isso requerem monitoramento de perto. É importante notar que os efeitos do dengue ocorreram principalmente no momento agudo da doença, ressaltando a importância da assistência adequada para evitar o óbito fetal.
As epidemias de dengue estão ocorrendo de forma cíclica no Brasil desde a década de 1980, mas só agora, com a Zika, que a comunidade científica se atentou para os efeitos da infecção em gestantes. Por quê?
Na verdade, este estudo foi iniciado antes da relação entre o zika e a microcefalia ser detectada. Mas o advento do zika acelerou as pesquisas e alertou a comunidade cientifica sobre a importância dos possíveis efeitos de infecções virais durante a gestação. O papel das infecções virais como precursor de efeitos adversos na gestação ainda é pouco conhecido e pesquisas nesta área precisam ser conduzidas e aceleradas.
É possível que haja outros efeitos da infecção por dengue que ainda não foram pesquisados? Qual é o panorama atual do conhecimento científico sobre os flavivírus?
É possível, e também é possível que com a circulação de 3 arboviroses juntas no mesmo ambiente gere alguma modificação no padrão epidemiológico. Não sabemos nada sobre os efeitos da co-circulação das 3 arboviroses. Ainda existem lacunas na literatura sobre o zika. E os efeitos do dengue na gestação ainda precisam ser melhor compreendidos. Além da discussão sobre vacinação.
O que deve ser pesquisado daqui para frente?
Existe um amplo campo de pesquisa na área de arboviroses como um todo. Mas especificamente com relação a dengue e efeitos adversos da gestação, é importante identificar os mecanismos patológicos que envolvem essa associação, além de repetir esses estudos em outros lugares para verificar se os resultados são similares, verificar os efeitos de dengue na mortalidade materna.
Vocês utilizaram apenas registros dos Sistema de Informação em Saúde para encontrar essa relação. Como o uso de grandes volumes de dados pode ajudar na pesquisa em saúde? Você acredita que os estudos epidemiológicos, em um futuro próximo, ganharão mais precisão e credibilidade com a utilização desses registros administrativos?
O uso de dados administrativos é uma grande ferramenta, principalmente em estudos que envolvem desfechos raros e de longa duração, que estava sendo subutilizada no Brasil. Linkage (cruzamento entre diversas bases de dados) na área de saúde materna infantil tem sido amplamente utilizado em países desenvolvidos para entender a associação entre exposições ocorridas previamente e durante a gravidez e os efeitos no feto, nascimentos e até mesmo durante a infância. Como esses dados já são produzidos rotineiramente, esse tipo de pesquisa se torna mais barato, rápido, com menos perda de follow-up (acompanhamento dos pesquisados) por isso mais conveniente do que as coortes tradicionais. Claro que existem grandes desafios que precisam ser superados para que possamos produzir conhecimento com esses dados, principalmente relacionados a acurácia do linkage, mas estamos avançando e este estudo demostra que os dados de rotina produzidos pelo Brasil podem ser utilizados para alavancar diversas áreas de pesquisa e responder inúmeras perguntas de investigação.
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