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“Fake news” foi eleita a expressão do ano, em 2017, pelo dicionário britânico Collins, por conta do uso amplamente disseminado do termo – inclusive por autoridades, como o ex-presidente norte americano Donald Trump. Um levantamento produzido pela Avaaz e pela Sociedade Brasileira de Imunizações (SBIm) em 2018, mostrou que sete em cada dez brasileiros acreditam em uma informação imprecisa sobre as vacinas. Pior, informações errôneas foram as razões dadas por 57% dos entrevistados para não se vacinar. (Estudo disponível aqui) Anos após, as fake news, ou notícias falsas em português, não se tornaram menos recorrentes.
A desinformação impõe desafios e não é um fenômeno tão fácil de ser entendido. Por isso, a Fiocruz Bahia conversou com Thaiane Moreira, doutora em Comunicação pela Universidade Federal Fluminense (UFF) e coordenadora do Laboratório de Investigação em Ciência, Inovação, Tecnologia e Educação (Cite-Lab). Atualmente a pesquisadora realiza diversos estudos referentes à desinformação relacionada à ciência, disputas sobre a informação e comunicação científica, sobre a educação científica, entre outros.
Thaiane Moreira foi a convidada da Fiocruz Bahia para ministrar uma Sessão Científica, com o tema “Saúde, Ciência e Desinformação”. Moreira apresentou alguns resultados dos seus estudos sobre a desinformação, que possuem dois eixos principais: saúde e meio ambiente. Ela ainda recorda como a disseminação de informações falsas foi um desafio enfrentado pela comunidade científica durante a pandemia da Covid-19, mas que não minou totalmente a crença da população em cientistas e pesquisadores (a Sessão Científica pode ser assistida no canal de Youtube da Fiocruz Bahia)
Nesta entrevista, abordamos mais alguns aspectos elencados pela pesquisadora como cruciais para entender o que é a desinformação científica e como podemos combatê-la. Moreira considera que há condicionantes nos próprios indivíduos para acreditar em uma notícia. “As pessoas acreditam na desinformação porque elas querem acreditar, não porque estão sendo enganadas”, afirma. Ela ainda alerta que há limites para a atuação da divulgação científica nesse cenário, e que é preciso olhar para problemas estruturais como a falta de acesso a educação científica desde a base escolar.
Existe mais de uma forma de compreender o que é a desinformação?
Na verdade, não existe um consenso para a definição sobre o que é desinformação. Parte dos pesquisadores tendem a pensar que a desinformação é uma informação intencionalmente feita para o engano. No entanto, há ainda um conjunto de discussões a partir da literatura acadêmica que tem mostrado as limitações desse tipo de definição principalmente a partir de duas chaves: a intencionalidade e o engano. Há limites para a definição e mensuração da intencionalidade de alguém que propaga desinformação. O que colocamos nessas discussões é que existe um risco muito grande de que sejam feitas acusações, ou qualquer tipo de perseguição, sobretudo política, usando essa definição de intencionalidade. Por outro lado, as pesquisas também apontam que os sujeitos não são enganados quando consomem ou compartilham uma desinformação. Na verdade, esse sujeito tem uma crença pré-estabelecida sobre aquilo que ele consumiu, e, se isso vai de encontro às suas crenças, ele usa a informação como uma forma de reafirmação do seu argumento.
É a partir dessa noção que alguns pesquisadores têm tentado definir esse conceito de desinformação a partir da noção de prática cultural. Assim, se pretende entender o que envolve o processo de desinformação a partir dos seus circuitos e da sua circulação, da disputa de sentido do sujeito junto ao seu ambiente social e dentro do ambiente digital principalmente
Mas, então, porque as pessoas acreditam em uma notícia falsa?
As pessoas acreditam porque elas querem acreditar na desinformação, não porque estão sendo enganadas ou porque falta competência científica, midiática ou competência informacional. As pessoas precisam de algumas informações para se agarrar e fazer valer uma crença. Ou seja, alguém recebe uma desinformação sobre vacina e, caso ele tenha argumentado anteriormente sobre a vacina e se aquela desinformação vai ao encontro daquilo em que ele acredita, o sujeito tende a reforçar a sua crença e compartilhar aquela peça desinformativa. Além disso, os estudos também têm mostrado outras questões mais comportamentais nesse processo do consumo desinformativo. Por exemplo, o medo de se sentir fora do debate público, validação de argumentos; são raciocínios mais motivados pelas emoções. Essa série de comportamentos mostram que, na verdade, o sujeito não é passivo e passível de ser enganado, mas sim um ator ativo nesse processo, sobretudo no que diz respeito a forma de confirmação das suas crenças
Acredito que entender o porquê dos sujeitos de fato acreditam e compartilham é fundamental para tecermos políticas e estratégias mais adequadas para o enfrentamento da desinformação. Lidar com esse fenômeno, que é vigente, e que precisamos contornar.
O que separa o fenômeno de fake news atual do compartilhamento de notícias falsas que já acontecia? O que acontece hoje que gera um alerta para esse problema?
O que difere é a questão do ambiente de disseminação, a forma como as notícias falsas e a desinformação circulavam anteriormente para como circulam agora. Se a desinformação tinha um alcance muito local, em torno de relações sociais focadas em um determinado agrupamento, hoje temos um espalhamento muito maior dessa desinformação por sua disseminação no ambiente digital. Temos ainda alguns fenômenos que dizem respeito a configuração desse ambiente. O digital é um espaço mediado tecnologicamente e projetado em torno de mediações algorítmicas que ajudam a direcionar o conteúdo para o público desejado. Então, quando a desinformação se vale dessas estruturas, ela passa a ter um alcance muito maior e direcionado para aqueles que são potenciais consumidores dessa desinformação. Daí, abre uma série de problemas e questões voltadas para a forma como a desinformação circula no ambiente digital e que se torna um desafio para quem luta para passar uma informação mais qualificada.
A ciência é um dos campos que mais sofre com fake news. Existe algum fator dentro do próprio campo que possa ter incentivado isso?
O primeiro ponto é que a ciência é a cultura da dúvida. Sem a dúvida, sem o questionamento, sem as perguntas e curiosidades não há ciência; é só afirmação. É justamente nesses pontos, que com as lacunas que a ciência ainda não foi capaz de preencher que reside boa parte da constituição de teorias da conspiração e também desinformação. Esse é um aspecto mais de ordem epistemológica: até onde a ciência é capaz de responder problemas sociais complexos. Há outra questão que é um problema estrutural. Sabemos que o acesso às universidades, por mais que tenha expandido nestas últimas décadas, ainda é algo muito limitado no país. Não é grande a parcela da população que tem a possibilidade de estar na universidade, de fazer parte do processo do conhecimento científico. Temos esse problema de acesso às universidades e outro problema de estrutura educacional, voltado à forma de construção de currículos pedagógicos sobre o ensino da ciência, à educação científica desde a base. Nossa construção curricular é muito baseada na questão dos resultados dos diferentes campos científicos e os avanços predominantes nessa área. Mas não temos um espaço dedicado para o processo de fazer ciência, de como motivar as indagações e as buscas por soluções e respostas para perguntas de pesquisa. Isso não é algo que está presente na nossa base e também dificulta o entendimento do que é e como fazer ciência. Ainda temos que avançar muito nessas questões para poder provermos políticas mais adequadas para uma educação científica que permita ao estudante pensar a ciência desde as suas primeiras curiosidades sobre o mundo
Como a divulgação científica deve lidar com um cenário de maior ceticismo das pessoas?
Precisamos levar em consideração que, assim como qualquer coisa na nossa sociedade, a comunicação não resolve problemas que são de ordem estrutural. Se não houver políticas efetivas pra solucionar problemas de base, a divulgação científica não vai conseguir enfrentar sozinha.
De toda forma, o papel da divulgação é crucial por conta da sua capacidade de falar sobre os resultados e avanços de pesquisa e também por poder instruir a população sobre como funciona a ciência. Como determinadas pesquisas chegaram a seus resultados, como é o processo científico? Nós, enquanto divulgadores científicos e estudiosos de divulgação científica, temos a competência de prover materiais que possam auxiliar na educação científica.
Então como lidar com isso? Todo mundo faz essa pergunta e não existe uma solução manual. Mas existem algumas evidências científicas que tem apontado para alguns avanços importantes. A primeira delas é entender que as pessoas acreditam em determinada desinformação ou acabam contestando as evidências científicas por conta de um conjunto de crenças anteriores. Entender a base dessas crenças pode servir como um mecanismo mais adequado e promissor para tecer estratégias de comunicação e de divulgação mais adequadas para que o sujeito revisite suas crenças. Além disso, outro ponto que é amplamente debatido é que não basta afirmar que algo é errado. O sujeito tende a rejeitar essas determinações classificatórias sobre a verdade e essa noção de uma autoridade incontestável. É importante trazer um entendimento sobre o processo, e não simplesmente apresentar o resultado final.
Anteriormente se acreditava que a crença em teorias da conspiração, como a ineficácia das vacinas, seria algo compartilhado por poucos grupos localizados. Você acredita que ainda hoje seja assim? O número de pessoas que compartilham dessas crenças chega a ser uma ameaça para a ciência?
Não é possível afirmar que esses grupos de adeptos de teorias da conspiração são de fato uma ameaça à ciência ou que eles têm um espalhamento muito mais amplo. O que acontece é que, se até 2015 ou 2016 esses grupos eram muito isolados, atualmente eles encontraram um eco e voz a partir de representações de lideranças políticas e influenciadores digitais. Com isso, há um aumento do alcance dessas opiniões. Isso sim é de fato algo preocupante, mas eu não sei até que ponto é uma ameaça. Penso isso por conta do seguinte: foi realizado um estudo pelo Instituto de Comunicação Pública da Ciência e Tecnologia (INCT-CPCT) [Estudo disponível aqui], que mostrou que entre os atores de maior confiança para a população brasileira estão os cientistas, professores e profissionais de saúde. Isso é algo muito relevante para nós, nesse ambiente em que sofremos uma série de ataques, de contestação às evidências científicas que estavam colocadas e que nos colocou em alerta a como essas teorias da conspiração poderiam minar a credibilidade e a confiança sobre a ciência junto a população. Mas o que os dados mostram é que, apesar da existência de representantes políticos e lideranças digitais que compartilham e disseminam teorias da conspiração e desinformação, ainda há uma confiança da população nos cientistas. Isso é muito importante, mas não nos alivia completamente a ponto de não considerarmos a existência desses grupos como uma agenda necessária de ser debatida.
Você acredita que veículos de mídia tradicional vêm lidando bem com o atual cenário de infodemia e espalhamento de desinformação?
Importante considerar que os veículos de comunicação da mídia tradicional e também de nativos digitais foram propagadores da desinformação tanto quanto atuantes no enfrentamento a desinformação científica. Por exemplo, uma pesquisa que foi realizada por mim, junto com colegas da Universidade Federal do Alagoas (UFAL) e da Casa de Oswaldo Cruz (COC/Fiocruz) [Disponível aqui] mostrou que grande parte dos veículos que compartilham pesquisas científicas depositadas em preprint [Projeto de artigo científico ainda não revisado pelos pares] tendiam muito mais a trazer desinformação do que informação qualificada. Esse é um ponto crucial para pensarmos a responsabilidade da informação que o jornalista e o veículo de mídia deve ter. E, principalmente, o papel do jornalista científico que deve ter toda uma competência e uma formação técnica para o tratamento adequado da informação científica.